Uma reunião aberta sobre despatologização das transexualidades com a presença de profissionais da saúde e pesquisadores de diversas áreas, com distintas abordagens. Essa foi a proposta de mais uma das atividades da II Conferência Internacional de Psicologia LGBT e campos relacionados, que acontece até sexta-feira (11) na sede da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), e tem como um dos realizadores o Conselho Federal de Psicologia (CFP).
O debate foi coordenado por Marco Aurélio Prado, doutor em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo com foco em estudos sobre participação política, identidades coletivas e movimentos sociais, e integrante da Comissão de Direitos Humanos (CDH) do CFP. Segundo ele, o objetivo da atividade foi ouvir diversos pontos de vista sobre a despatologização para a elaboração de um documento com informações que possam nortear a ação da autarquia no próximo período.
A posição do CFP sobre o tema está em Nota Técnica divulgada em 2013 que aponta para o entendimento de que deve-se superar a lógica da patologia no atendimento às pessoas trans: “a transexualidade e a travestilidade não constituem condição psicopatológica, ainda que não reproduzam a concepção normativa de que deve haver uma coerência entre sexo biológico/gênero/desejo sexual”, diz a nota.
A psicóloga Daniela Murta Amaral, mestre e doutora em Saúde Coletiva (Ciências Humanas e Saúde) pelo Instituto de Medicina Social / UERJ, destaca, contudo, que ainda há grandes abismos entre teoria e prática em relação a esse tema. “Pessoas trans e travestis ainda estão excluídas e têm dificuldades em receber atendimento qualificado, garantindo esse direito, em grande parte, quando ele vem acompanhado de questões de extremo adoecimento e agressões. Os relatos são de inexistência de acolhimento e isso faz com que essas pessoas fiquem na clandestinidade. Apesar de ações como a política LGBT, podemos afirmar que as pessoas ainda compõem um segmento vulnerável da população. O que prova uma incongruência, pois o que está nos documentos não acontece na prática”.
Leonardo Peçanha, homem trans representante do Instituto Brasileiro de Transmasculinidades (IBRAT), lembrou do cuidado que os (as) psicólogos (as) devem ter no acolhimento a essas pessoas para evitar posturas patologizantes das identidades trans e travestis. Ele destaca, dentre esses cuidados, que se respeite a maneira com que essa pessoa entende o seu corpo, seja a vontade de fazer cirurgia ou hormonizar seu corpo, utilizando seu nome social e evitando falas patologizantes. As dificuldades, segundo ele, estão no acesso aos serviços de saúde e no atendimento jurídico, em que os profissionais, na maioria das vezes, exigem laudos médicos e até mesmo a presença de testemunhas para garantir assistência e ou permitir a mudança de nome.
“Vou falar de um lugar de quem vive essa patologização. Quando nascemos nosso sexo é definido pelo órgão sexual que o médico enxerga. Como pessoas trans e travestis rompemos com essa norma de gênero e isso dificulta tudo, pois somos perseguidos por fugir desse padrão normativo”, afirmou.
Segundo Keila Simpson, representante da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), há outra mudança urgente que precisa ser posta em prática pela Psicologia: a de ouvir os relatos das travestis, não apenas as que estão em posições de coordenação de entidades e organizações, mas as que estão nas ruas, nos bairros e vilas. “Quando a população trans entra num espaço e vai conversar com um profissional da saúde, como um (a) psicólogo (a), por exemplo, a pessoa pensa que precisa ser aceita para conseguir um laudo ou um atendimento. Porém esse pensamento faz com ela atenda a um padrão já estabelecido, e o que o profissional da saúde precisa entender é que o laudo é dessa pessoa, ele (a) irá apenas assinar. Se estamos formando uma nova leva de profissionais, vamos instiga-los para que eles tenham essa nova visão”, enfatizou.
Para João Manuel Calhau de Oliveira, doutor em Psicologia pelo Instituto Universitário de Lisboa, Portugal, e especialista em estudos de gênero, é preciso “descolonizar o corpo”. A expressão, segundo ele, tem a ver com deixar de lado formas de lidar com pessoas trans e travestis que já estão atreladas a conceitos previamente estabelecidos e que acabam impedindo que se avance em novos conceitos e descobertas. “Despatologização é construir uma democracia de gênero, desconstruindo os conceitos que acabam aprisionando essas pessoas”. Para ele, o principal condicionante para que se alcance esse objetivo é ouvir e aprender com as pessoas trans e travestis e incentivá-las na produção teórica sobre elas próprias.
Legislação
A portaria 2.803 do Ministério da Saúde, de 19 de novembro de 2013, que amplia e redefine o processo transexualizador no país, foi alvo de muitas críticas por parte dos debatedores.
Beto de Jesus, fundador da Associação da Parada do Orgulho LGBT de São Paulo e que hoje ocupa a Secretaria para América Latina e Caribe da ILGA (International Lesbian, Gay, Bisexual, Trans and Intersex Association), classificou a portaria como “cruel”. “A pessoa precisa se reconhecer como doente para ter direito a cirurgia. É algo que eu não posso concordar, é assumir uma mentira, uma inverdade”, disse.
Ele também destacou a importância de que o Brasil se espelhe em legislações sobre o tema vigentes em outros países, elaboradas pela perspectiva dos direitos humanos. A Argentina é exemplo disso: em 2012, foi promulgada no país a Lei de identidade de gênero, que permite a troca de nome de pessoas trans e travestis apenas pela autoidentificação. Outro exemplo dado pelos debatedores foi a lei vigente em Malta, que em 2015 aprovou uma Lei – considerada uma das mais avançadas do mundo – que permite que as pessoas alterem legalmente seu gênero apenas preenchendo uma declaração juramentada no cartório, além de excluir a necessidade de cirurgia de adequação de sexo para a mudança de gênero no documento de identidade.
“A Argentina propôs uma revolução, não patologizou ninguém. A lei respeita o sentido e o desejo, aquilo que você diz que você é. À medida que temos um processo transexualizador como o nosso, que nos reconhece como doentes, nós fortalecemos a ação médica. Os processos transexualizadores precisam ser questionados na medida em que a gente busca o corpo normatizado, e a gente tem reforçado isso. Quando eu faço isso, eu nego outras possibilidades de corpos que estão no dia a dia querendo ser outros sujeitos”, defendeu Jesus.
Campanha Despatologização das identidades trans e travestis
Desde 2014, a Comissão de Direitos Humanos (CDH) do Conselho Federal de Psicologia (CFP) desenvolve uma campanha de comunicação em apoio à luta pela despatologização das identidades trans e travestis. Profissionais da Psicologia, pesquisadores e pesquisadoras, ativistas, pessoas transexuais e travestis foram convidados (as) a debater o fazer psicológico no processo de transexualização à luz dos Direitos Humanos, além do panorama dos debates políticos em torno da luta no Brasil e no mundo.
A campanha conta com um site especial Despatologização das Identidades Trans (https://despatologizacao.cfp.org.br/) com vídeos especiais, notícias, links para legislação relacionada (nacional e internacional), área especial com indicações de blogs/sites de trans que contam suas experiências de vida e transformações, entidades, associações, empresas e fundações amigas da questão da despatologização das identidades trans – além de área destinada a exemplos de atuação alternativa de psicólogos e psicólogas nos ambulatórios e equipes do SUS.