A análise de experiências de países nas políticas públicas em Saúde Mental, com o objetivo de dar seguimento à Reforma Psiquiátrica, foi o mote da entrevista (discussão) inicial do 1o Colóquio Internacional em Recovery (Restabelecimento): Vivências e Práticas, iniciado nesta quarta-feira (25), em São Paulo. Os participantes compararam os avanços e desafios de Brasil, Estados Unidos e Itália no que diz respeito, especialmente, à cidadania ativa das pessoas com sofrimento mental.
O evento foi aberto, logo antes, pelo presidente do International Recovery and Citizenship Council (IRCC), Michael Rowe; pelo conselheiro Rogério Oliveira, do Conselho Federal de Psicologia (CFP); pelo presidente da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme), Walter Ferreira Oliveira; e pela representante da Comissão Organizadora do Colóquio, Graziela Reis.
Para o professor associado da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) Roberto Tykanori, uma característica marcante do caso brasileiro é a participação política dos usuários. “Como nossa experiência está ‘linkada’à Reforma, em muitos serviços no território se possibilitou a inserção deles e de seus familiares como atores, que gera um sentimento de coletividade”, avaliou. A seu ver, as conferências nacionais organizadas pelo governo federal amalgamaram essa cultura de luta por um lugar social, originada na participação em assembleias, associações e manifestações públicas.
Tykanori, que coordena a área de Saúde Mental da Secretaria Municipal de Saúde da capital paulista, disse que essa dimensão da vida incide na questão subjetiva e psicológica dos pacientes: “Essas pessoas se reconfiguram diferente, evoluem de outra forma, estabilizam-se muito mais rápido. Mesmo tendo crises, recaídas”.
Nos Estados Unidos, o movimento inicial priorizou a conquista de direitos civis, explicou o diretor do Programa de Recovery do Departamento de Psiquiatria, Programa de Recovery e Saúde Comunitária (PRCH) da Universidade de Yale, Larry Davidson. Ele comparou essa bandeira à da população negra nos anos 1940. “Uma das lutas dos negros era poder se sentar ao lado de qualquer pessoa em lanchonetes, em ônibus. Martin Luther King entendeu que isso não bastava. Era preciso ter também dinheiro no bolso e dignidade”, ressaltou. “Ser incluído na comunidade como cidadão de segunda classe não é suficiente. As pessoas precisam se sentir pertencentes, valorizadas.” Segundo avaliou, o serviço comunitário norte-americano ainda não conseguiu cumprir a promessa de cidadania.
Davidson sublinhou a viabilidade de uma vida plena para as pessoas com sofrimento mental e lembrou um episódio em que estava diretamente envolvido. “Num evento, uma pessoa idosa se identificou assim: ‘Meu nome é tal e tomo medicamentos há 40 anos’”, contou. “Na minha vez, apresentei-me assim: ‘Meu nome é Larry, sou professor e tomo medicamentos há 20 anos’. Não há limites para o que essas pessoas podem fazer. Elas podem contribuir muito com a sociedade.” Ao lado de empregos competitivos, ele apontou a manutenção de uma residência por conta própria e a criação dos filhos como dimensões que podem ser exercidas, com ou sem suporte dos pares, dependendo do caso.
Convergências
A militante da luta antimanicomial Ana Marta Lobosque identificou a ênfase no protagonismo do usuário e a despatologização da loucura como dois pontos caros às experiências dos três países. No que diz respeito ao Brasil, ela classificou a lógica vigente antes da Reforma Psiquiátrica como uma “imitação barata” do modelo francês de manicômio e descreveu uma espécie de efeito colateral do enfrentamento. “Como a pauta era tirar os pacientes dos hospícios, foi preciso fazer ‘disputa de mercado’ com eles”, contou a psiquiatra doutora em Filosofia. “Com isso, a rede de serviços comunitários foi moldada para o atendimento de uma clientela muito grave, tanto do ponto de vista psicológico como do social. E a psicopatologia e companhia, que deveriam ser recursos auxiliares para um certo momento (do acompanhamento), acabaram virando o principal.”
Ana Marta ponderou que, em termos de história e de instituições, os brasileiros conhecem muito menos dos EUA que da Europa. Assim, para aprofundar o diálogo com a linha proposta, levantou questões a tratar no encontro: “Quais são as correlações de força em que o Recovery atua? Quem são seus adversários enquanto movimento social? Como preservar a diretriz de universalização que consideramos prioridade sem incorrer nessa psicopatologização? Como ajudar aquelas personagens sociais que sempre precisarão de ajuda sem que se sintam devedoras?”
O diretor do Departamento de Saúde Mental de Trieste, Roberto Mezzina, destacou que o assunto é complexo desde sua definição e que não se sente “apaixonado” pela palavra síntese. “Todos podem capturar o que significa na sua vida: autodeterminação, protagonismo, empoderamento”, listou. “Estamos usando um conceito britânico. Tem a ver com enfermagem, que está dando grandes contribuições na área.” Ele ponderou que o “assunto-chave” pode ser uma ferramenta transformadora para o sistema de suporte no mundo inteiro, mas que não dá para saber até que ponto realmente será assim.
Mezzina enfatizou que a mudança na Itália não está concluída, e apontou o risco de colocar o Recovery contra movimentos e propostas aos quais, conforme analisou, a proposta está conectada. “A experiência em nosso país – que mudou o sistema, mas ainda pouco das práticas e do modo de pensar – e o intercâmbio com os colegas da Holanda mostram que o sistema deve ser construído em torno da pessoa, que é preciso ensinar as outras pessoas a usar o poder de forma correta e que a liberdade vem em primeiro lugar”, defendeu.
O debate foi coordenado pela psicóloga Tânia Grigolo, da Comissão Organizadora.
Articulação
Na mesa oficial de abertura, Graziela Reis lembrou o início da interação com o movimento, a pedido do CFP, em 2014, pela intenção de trazer novas experiências em Saúde Mental para o país. “O evento faz justamente isso: promove a aproximação entre novas energias, novas ideias e novas pessoas e a Reforma Psiquiátrica brasileira”, observou.
Michel Rowe remeteu à criação do IRCC, há três anos, com o objetivo de reunir “países, pessoas e interesses” nessa direção. Narrou os passos da consolidação da entidade e resumiu o entendimento que a norteia: “Nós vemos um mundo em que as pessoas possam participar da comunidade”. Ele adiantou que a próxima conferência do IRCC pode ser realizada no Brasil.
Walter Ferreira Oliveira ressaltou que a Saúde Mental atravessa um momento de transição no país, e que a presença dos pesquisadores, gestores e usuários de outros países enriquecerá o Congresso da Abrasme, que começa nesta quinta (26). “Essa presença vai iniciar uma série de diálogos e trazer uma série de boas novas para esse campo”, disse.
Rogério Oliveira lembrou que, em seu planejamento estratégico, o 16º (atual) plenário do CFP aprovou duas linhas-mestras de atuação – a agenda profissional propriamente dita, da categoria dos (as) psicólogos (as), e aquela que diz respeito às grandes agendas da sociedade brasileira. Nesta, a centralidade da Saúde Mental e a necessidade de que toda a rede de atenção psicossocial pautasse sua discussão pelo foco do usuário. Ele destacou a parceria com a Abrasme, a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e as instituições estrangeiras na construção do Colóquio. “O dia de hoje vai ser um marco na luta antimanicomial e na história da Saúde Mental no Brasil”, afirmou.